A Maria revelou-se uma alma teimosa desde cedo. Ainda no ventre da mãe, foi caso único, surpreendendo com a sua extraordinária gestação de 15 meses. "Esta criança não quer nascer!", repetiam os médicos entre suores e elevado desespero, verificada a ineficiência do parto induzido e frustrada a tentativa de cesariana, recusando-se a barriga daquela mulher a rasgar-se mesmo perante os mais afiados instrumentos cirúrgicos.
Quando por fim achou que era tempo de vir ao mundo, apresentou-se sem chorar. Não fosse o vigor que colocara nas pequenas mãos ao agarrar o braço da enfermeira, e todos pensariam que havia nascido morta. Contra tudo o que seria de esperar, depois de realizados os devidos exames, concluiu-se a sua invejável saúde.
Porém, o espanto havia de fazer-se de novo convidado quando começou a falar e a escrever muito antes do tempo. Não só na própria língua como também em francês, inglês e alemão. "É um génio" diziam os doutores, não imaginando que o universo, numa perversa tentativa de equilíbrio das forças da natureza, dotara aquela rapariga de um terrível padrão de comportamento: a atracção por tudo aquilo que ela própria sabia ser-lhe prejudicial.
Começou por ser apenas uma estranha propensão para o perigo. Teimava em agarrar as pontas das facas, entalava os dedos nos armários e nas gavetas, insistia em subir bancos e cadeiras para espreitar à janela. Como acção preventiva, livrou-se a mãe de tudo quanto era objecto cortante ou líquido tóxico que pudesse lembrar-se de ingerir, selando ainda a cadeado todos os móveis da casa. Inutilizou também a lareira e colocou portadas nas janelas. Rezou para que nenhum mal lhe chegasse.
Mas depressa deixou de poder mantê-la na sua redoma. Na escola, a Maria seguia arranjando conflitos, desafiando professores e experimentando as mais diversas proibições, chegando à fase adulta com um longo historial de relações abusivas. Não houve sermão, tareia ou castigo capaz de mudar aquela destrutiva característica. Como um condutor suicida, levava tudo até às últimas consequências.
Um dia, depois de vários meses sem aparecer à mãe, bateu-lhe à porta. Em lágrimas, queria esconder-se do namorado, um traficante de droga que a sufocava com um desmesurado sentimento de posse. Obsessivo, depressa deu com ela, bastando-lhe meia dúzia de juras de amor e promessas de mudança para que voltasse a cair em graça.
A mãe, vendo que se deixava levar de novo na cantiga do bandido, colocou-se entre os dois, pois se havia lição que a vida lhe ensinara era a de que ninguém muda por ninguém. A discussão estalou e os gritos sucederam-se. O homem tentava reaver o brinquedo, a mulher defendia a cria e a Maria lançava agora impropérios contra a mãe, que a impedia de estar com o homem que amava.
No meio da confusão, o traficante puxou de uma arma e baleou a mãe, que morreu ali mesmo.
O homem apanhou prisão perpétua.
A Maria amaldiçoou-o e lamuriou-se muito. Depois, juntou-se com um bêbado.